segunda-feira, 19 de março de 2012

Por que razão alguns Evangelhos não falam da infância de Jesus?

Não é por acaso que, na Missa da meia-noite de Natal, todos os anos se lê o relato do Nascimento de Jesus pelo Evangelho de S. Lucas. A razão é que só ele refere certos pormenores, como: Belém, Jesus envolto em panos na manjedoura, os pastores e o canto dos anjos. Tal como só o Evangelho de Mateus é que fala dos magos… 
Um vazio lamentável

É fácil de verificar que os quatro Evangelhos começam todos de modo diferente. Mateus abre com a infância de Jesus. Marcos, pelo contrário, com a vida já adulta do Senhor. Lucas volta a apresentar-nos os relatos da infância. E João vai ainda mais atrás, a quando Jesus vivia no céu junto de seu Pai, antes de vir à terra.

Por que razão os evangelistas diferem na abertura da história de Jesus? Não conheciam todos a vida completa do Mestre? Ou pensaram que alguns episódios não mereciam ser incluídos no seu evangelho?

Para responder a estas perguntas, devemos ter em conta que os primeiros cristãos não entenderam a pessoa de Jesus toda de uma vez, mas gradualmente. E que decorreram muitos anos antes de compreenderem que esse Jesus, que tinha vivido e caminhado pela Palestina junto deles, era o Filho de Deus. Ora isto influiu na maneira de começar a escrever os evangelhos.

O morto que está vivo

Quando os apóstolos souberam da morte e ressurreição de Jesus, saíram a pregar esta inacreditável notícia. Era algo tão extraordinário, tão maravilhoso, tão inaudito, que se converteu na única mensagem que lhes importava comunicar à gente. De todas as formas possíveis, procuravam convencer os seus ouvintes deste grande prodígio, nunca antes ocorrido, e que Deus tinha realizado agora em Jesus.

Sim. É certo que eles tinham presenciado outras ressurreições. A de Lázaro, por exemplo (Jo 11). Ou a da filha de Jairo (Mc 5,21-43). Ou a do filho de uma pobre viúva na aldeia de Naim (Lc 7,11-17). Mas todas estas pessoas, ao ressuscitarem, tinham voltado à terra. E depois, morreram outra vez. Jesus, porém, era a primeira pessoa que tinha ressuscitado para não nunca mais morrer; que tinha conseguido vencer a morte para sempre. Era uma notícia extraordinária, muito boa. Por isso lhe chamaram “evangelho”, que em grego significa “a boa notícia”.

Isto levou-os a compreender que Jesus se tornara o Messias e que, portanto, tinha passado a ser o Filho de Deus graças à sua morte e ressurreição.

Por isso, a única coisa que os cristãos pregaram, durante a PRIMEIRA ETAPA da vida da Igreja, foi que Jesus tinha morrido e ressuscitado, e que assim se tinha tornado o Filho de Deus.

Filho de Deus, desde quando?

Encontramos isto no livro dos Actos dos Apóstolos, que contém o eco das antigas pregações dos apóstolos. Por exemplo Pedro, no sermão pronunciado no dia de Pentecostes, dizia à multidão reunida: «Foi este Jesus que Deus ressuscitou, e disto nós somos testemunhas. […] Saiba toda a casa de Israel, com absoluta certeza, que Deus estabeleceu como Senhor e Messias a esse Jesus por vós crucificado» (Act 2,32.36).

E perante as autoridades judaicas, a quem os apóstolos foram levados por anunciar o evangelho, Pedro explica: «O Deus de nossos pais ressuscitou Jesus, a quem matastes, suspendendo-o num madeiro. Foi a Ele que Deus elevou, com a sua direita, como Príncipe e Salvador. E nós somos testemunhas destas coisas, juntamente com o Espírito Santo…» (Act 5,30-31).

São Paulo explica aos judeus que, quando Deus ressuscitou Jesus, cumpriu-se uma profecia que dizia: «Tu és meu Filho, Eu hoje te gerei» (Act 13,32-33).

Também nas Cartas de Paulo, que são os escritos mais antigos do Novo Testamento, encontramos a mesma ideia. Aos Romanos, escrevia: «Seu Filho, nascido da descendência de David segundo a carne, constituído Filho de Deus em poder, segundo o Espírito santificador, pela ressurreição de entre os mortos, Jesus Cristo Senhor Nosso» (1,3-4). E aos Filipenses: «Jesus Cristo… rebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso mesmo é que Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu o nome [título] que está acima de todo o nome: ”Jesus Cristo é o Senhor!”» (2,8-9).

O nascimento da Paixão

Os primeiros cristãos, pois, pregavam que na ressurreição Jesus pôde alcançar a glória de Filho de Deus que não teve durante a sua vida. Assim encontraram resposta ao facto de a sua actividade e ministério na terra terem sido tão humildes: porque Deus só lhe reservava para depois da morte um lugar glorioso e um título divino.

Portanto, quando os cristãos quiseram pôr por escrito algo da vida de Jesus, o único que lhes pareceu importante escrever foram os detalhes da sua morte e ressurreição.

Assim nasceram os relatos da Paixão do Senhor: a prisão, a flagelação, as humilhações dos soldados, as negações do seu amigo Pedro, a coroação de espinhos, o julgamento perante o governador Pilatos, a crucifixão, os apupos da multidão, as horas de terrível agonia, a sua morte como um criminoso, e, finalmente, a triunfante ressurreição.

Dos evangelhos, pois, a primeira coisa a ser escrita foi o final; isto é, a secção conhecida pelo nome de “Relatos da Paixão”.

Saber mais sobre o Mestre

Mas, à medida que os anos passavam, a Igreja entrou numa SEGUNDA ETAPA. Os convertidos ao cristianismo já não se contentavam com saber como Jesus tinha morrido e ressuscitado. Nas reuniões, procuravam saber um pouco mais sobre a sua pessoa: o que tinha feito, que mensagem ensinara, onde tinha vivido, como foi a sua vida.

Então, começaram a ser redigidas algumas colecções com as suas frases mais famosas, os seus ditos mais recordados, as suas parábolas, os seus milagres mais espectaculares. E, em forma de folhas soltas, eram utilizadas para a catequese dos cristãos que queriam aprofundar um pouco mais a doutrina do Mestre.

Com estas informações à mão, e com a ajuda do Espírito Santo, os cristãos foram aprofundando o mistério da pessoa de Jesus. Compreenderam que Ele não podia ter ensinado verdades tão sublimes, se então não fosse já o Messias. E descobriram, assim, que Jesus era o Messias e o Filho de Deus não a partir da ressurreição, mas desde antes: desde a sua vida pública. Que Deus o tinha chamado seu Filho quando Jesus começou a pregar. A ressurreição não fez mais do que manifestar publicamente o que já sucedia com Jesus desde que fora baptizado por João.

Um Filho em segredo

Esse material de parábolas, ditos e milagres, tornou-se tão importante como o da paixão. Então um escritor, a quem chamamos MARCOS, decidiu juntá-lo aos relatos da paixão. E nasceu o primeiro evangelho.

Como Marcos tinha esta nova focagem, isto é, que Jesus era Filho de Deus já no momento do baptismo, e não só ao ressuscitar, no princípio do evangelho diz que, quando Jesus saiu da água após o baptismo, uma voz do céu disse: «Tu és o meu Filho muito amado» (Mc 1,9-11). Desta forma, ficava claro para os leitores, que Deus reconhecia Jesus como seu Filho já nesse momento.

Mas, segundo Marcos, nunca os discípulos nem as outras pessoas se deram conta disso. E Ele não se preocupou em revelá-lo abertamente a ninguém, porque não teriam sido capazes de entendê-lo.

Por isso, embora o evangelho de Marcos afirme que Jesus é Filho de Deus desde o seu baptismo, nunca ninguém o reconhece como tal publicamente. Só no momento da sua morte, o segredo é descoberto por um centurião romano que estava ao pé da cruz, o qual, «ao vê-lo expirar daquela maneira, disse: Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!» (Mc 15,39). Mais ninguém.

Infância interessante

Uns anos mais tarde, a reflexão da Igreja entrou numa TERCEIRA ETAPA. Porque os cristãos, que amavam e seguiam fervorosamente a Jesus, queriam saber ainda mais sobre a sua vida: quem foram os seus antepassados, onde tinha nascido, onde tinha sido criado. E nesta busca de informação foram aparecendo novos relatos, que narravam os factos da infância do Senhor. E ao meditar nestes relatos, os primeiros cristãos fizeram uma nova descoberta: que Jesus era Filho de Deus não no momento do baptismo, mas já na sua infância; mais ainda: no momento da sua concepção, quando a Virgem Maria, sua mãe, o gerou, já Ele era o Filho de Deus.

Ao aceitar-se esta nova ideia, os relatos da infância de Jesus também passaram a ser importantes, e começaram a ser postos por escrito. Surgiram, assim, os “Relatos da Infância”, nos quais já se diz expressamente que Jesus é Filho de Deus.

Por exemplo, conta-se que, pouco depois de o menino Jesus nascer, a sua família teve que fugir para o Egipto, para que se cumprisse a profecia que anunciava: «Do Egipto chamei o meu Filho» (Mt 2,15). E quando na anunciação o anjo comunica a Maria a sua gravidez por obra do Espírito Santo, diz-lhe duas vezes que o menino que vai nascer será chamado Filho de Deus (Lc 1,32.35).

Por isso quando, pouco depois, escreveram as suas obras, Mateus e Lucas, em vez de começarem os seus evangelhos com o baptismo de Jesus, como Marcos, resolveram incluir este novo material da infância do Senhor.

Descoberto na tempestade

Os evangelhos de Mateus e Lucas, pois, como contavam que Jesus era Filho de Deus desde o seu nascimento, não podiam dizer que na sua vida pública ninguém sabia (como dizia Marcos). Por isso, retocam algumas das suas passagens a fim de afirmar que a sua filiação divina já era conhecida pelos seus discípulos.

Assim, depois de Jesus caminhar sobre as águas, MATEUS diz que todos os discípulos, ajoelhados, lhe dizem: «Verdadeiramente Tu és Filho de Deus» (Mt 14,33). E quando Jesus pergunta aos seus discípulos que opinavam dele, Pedro responde: «Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo» (Mt 16,16). E quando Jesus morre, em vez de dizer, como Marcos, que só o centurião romano o reconhece, diz que todos os guardas que estavam com Ele, confessam em coro «Verdadeiramente este era Filho de Deus» (Mt 27,54).

LUCAS, por sua vez, diz que o próprio Jesus se encarregou de revelar aos seus discípulos que era o Filho de Deus ao dizer-lhes: «Meu Pai entregou-me todas as coisas. Ninguém sabe quem é o Filho senão o Pai; e ninguém sabe quem é o Pai senão o Filho, e aqueles a quem o Filho quiser revelá-lo» (Lc 10,22).

Lá em cima, desde sempre

Os anos foram passando, e já perto do final do século primeiro a Igreja entrou na QUARTA ETAPA e última da sua reflexão sobre este tema. Os cristãos, remontando até antes do nascimento de Jesus, chegaram a uma nova conclusão: que Jesus era Filho de Deus muito antes de nascer. Melhor dito, que desde sempre tinha sido Filho de Deus. Que nunca tinha “começado” a ser Filho de Deus, mas que o foi desde toda a eternidade. Jesus não começou a existir quando Maria ficou grávida dele, mas já “preexistia” desde antes da criação do mundo, no céu, junto de Deus.

Nesta época escreveu JOÃO o seu evangelho. E também começou, como os outros três, pelo baptismo de Jesus. Mas deu-se logo conta de que ficaria mais completo se acrescentasse esta nova ideia. E por isso, em vez de colocar os relatos da infância como Mateus e Lucas, foi ainda mais atrás e acrescentou, em jeito de prólogo, um belo hino que os cristãos cantavam nas suas reuniões litúrgicas sobre a preexistência de Jesus, e que começava assim: «No princípio já existia a Palavra; e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus» (Jo 1,1).

Um livro às avessas

Hoje, quando lemos os evangelhos, começamos pela infância de Jesus, continuamos com a sua vida pública e concluímos com a sua morte e ressurreição. Contudo, foram escritos ao contrário: Primeiro compôs-se a sua morte e ressurreição, depois a sua vida pública, e finalmente a sua infância.

Esta composição às avessas obedece à compreensão gradual que os primeiros cristãos tiveram acerca de Jesus como Filho de Deus.

Num primeiro período, a ressurreição de Jesus foi o único dado da sua vida digno de menção, o único “evangelho”. Por isso as Cartas de Paulo e os Actos dos Apóstolos nunca contam nenhum facto histórico da vida de Jesus, a não ser a sua morte e ressurreição. Os episódios anteriores não tinham maior valor nem mereciam ser contados, pois pensava-se que então Ele ainda não era Filho de Deus.

Quando mais tarde os cristãos reflectiram sobre a identidade de Jesus, e entenderam que era Filho de Deus já durante o seu ministério, não houve dificuldade em recompilar toda a informação sobre a sua vida pública, os seus ditos e milagres. Então a vida pública de Jesus ganhou também importância, entrou na categoria de “evangelho”, e foi incluída na obra composta por Marcos.

Deu trabalho, mas esclareceu-se

Tempo depois, a Cristologia continuou a progredir. Compreendeu-se que Jesus era Filho de Deus desde a sua concepção, e assim os relatos da infância também passaram a ser importantes e puderam ser acrescentados como “evangelhos” nos escritos posteriores de Mateus e Lucas.

Finalmente, com a iluminação do Espírito Santo, soube-se da preexistência de Jesus como Filho de Deus, desde antes do seu nascimento. E então o quarto evangelho incluiu a novidade, no hino do seu prólogo.

Os primeiros cristãos não entenderam de um golpe quem era Jesus, na realidade. Foram-no descobrindo aos poucos, com esforço, reflexão e oração. A pessoa de Jesus era tão misteriosa, tão inconcebível, tão fora de toda a lógica, que levou muitos anos a convencer-se de que esse Jesus que tinha comido com eles, caminhado pelas suas praças, entrado e dormido nas suas casas, a quem tinham visto e tocado, era nada menos que Deus em pessoa que os tinha visitado na terra.

Hoje também nos custa crer que Jesus continue vivo entre nós. Que continue a passear no meio das nossas ruas e assista às nossas reuniões. Porque a pessoa de Jesus, em parte, continua a ser desconhecida para muitos crentes. Por isso devemos fazer o mesmo esforço daqueles primeiros cristãos, e pouco a pouco entender quem é este Jesus que passou pela terra e que ainda continua vivo de um modo misterioso. Só assim, gradualmente, como os evangelistas, poderemos saber que quer de nós hoje – agora, que o estamos a conhecer melhor.

Autor: Ariel Alvarez Valdés, In Revista BÍBLICA, 331, pp. 3-8. Tradução de Lopes Morgado, OFMCap. 

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